sábado, 6 de agosto de 2011

Amor e guerra entre os sexos



Noites de sociologia - XII edição
Amor e guerra entre os sexos
28 de Abril de 2003
Isabel Dias
Amor e violência entre os sexos
É muito díficil situar a génese sócio-histórica do amor. No entanto, não
existem dúvidas que a sua conceptualização se operou inicialmente em quase
todas as sociedades antigas, da Babilónia à Grécia Antiga. Também não existem
dúvidas que o amor e a paixão têm sido, historicamente, encarados como uma
espécie de ameaça para a existência do ser humano. Deste modo, ora se impedia
a experiência amorosa por motivos de natureza económica, ora era evitada porque
comprometia a sobrevivência do indivíduo e da própria família (Pacheco, 1998).
Negócio ou união conveniente, na sociedade tradicional, o casamento constituía
um acto demasiado sério para resultar da escolha pessoal (Lebrun, 1983). Nesta
sociedade, era árdua a luta pela existência e pela salvaguarda do património,
pelo que a prudência na escolha do cônjuge e na realização dos casamentos era
comum.
No final do século XVIII, o amor romântico veio destronar as considerações
de ordem material e familiar e colocou a felicidade e a realização individual no
centro da formação do casal. A afectividade tornou-se central e a sexualidade
perdeu o seu carácter instrumental (Dias, 2003, p. 20). O amor romântico
reorientou o casal para um relacionamento complexo, onde a auto-exploração,
a empatia, a busca interior, a troca de afectos se conjugam no relacionamento
erótico (Pacheco, 1998). Com o triunfo do amor romântico, no século XX, a
lógica de orientação relacional evoluiu para a aceitação da sexualidade pré-
conjugal, extra-conjugal e homossexual. De igual modo, se instalaram na
conjugalidade moderna as características de instabilidade e de transitoriedade,Isabel Dias
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as quais têm tradução na elevada frequência de divórcios, de separações, mas
também de recasamentos (Ibidem). A monogamia deixou de ser “para a vida”
para se tornar “serial”, permitindo aos indivíduos a possibilidade de encetarem
várias relações íntimas e, desta forma, viverem em cada uma delas “um grande
amor”.
Na família moderna, o amor romântico constitui a base e o fundamento do
casamento. Este é praticamente impensável sem amor. Todavia, o amor também
pode ser fonte de instabilidade e de conflito. O casal “não se ama sempre nem
para sempre” (Teixeira Fernandes, 1998, p.66) e o sentimento que está na origem
da sua formação pode conduzir à erosão, desgaste e à sua própria dissolução.
As relações íntimas ganharam em intensidade mas perderam em durabilidade
(Ibidem). A psicologização da vida privada conduziu os indivíduos a ver o mundo
exterior como impessoal e vazio e a procurar no casal e na família o sentido da
sua existência (Sennett, 1979). Porém, com o enfraquecimento das sociabilidades
públicas, a intimidade torna-se, por vezes, dolorosa e tirânica, provocando um
sentimento de claustrofobia (Ibidem).
A família e o casamento moderno encontram-se, deste modo, sujeitas a
inúmeras tensões e contradições. Existe tensão ou contradição entre o modelo
fusão, em que os cônjuges partilham tudo, e o ideal cultural do individualismo.Tal
tensão pode conduzir a um conflito entre os interesses da família e os interesses
dos indivíduos, que, por vezes, preferem investir mais na construção de uma
carreira profissional, não conseguindo conciliar os interesses do “nós-família”
com os do “eu” (Singly, 2000). Existe, igualmente, tensão entre a insistência na
igualdade dos cônjuges e na partilha das decisões e o quotidiano das relações
conjugais e familiares. Esta tensão manifesta-se num conjunto de desigualdades
observáveis em diversos domínios, desde a socialização e a formação diferencial
entre os sexos, até às oportunidades de mobilidade social e às desiguais
contribuições domésticas. Porém, podemos afirmar que o fenómeno da violência
doméstica constitui uma das maiores contradições da família moderna. As
agressões infligidas entre os cônjuges, mas também sobre os filhos e os membros
idosos da família, pela regularidade com que acontecem e pela legitimidade
cultural com que são encaradas, revelam-nos que a violência tornou-se, tal como
o amor, numa componente quase “normal” da vida familiar da maior parte das
sociedades (Gelles e Straus, 1979).
O conflito parece inevitável nas relações conjugais e parentais do nosso
tempo, que são cada vez mais densas. O paradoxo reside, então, numa família
que é simultaneamente um lugar de afectos e de violência. Com efeito, os côn-
juges, os pais e os filhos, estão ligados por laços de intimidade e de proximidade.Noites de sociologia - XII edição
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Os agressores e as vítimas conhecem-se, mantêm relações íntimas e partilham
vários aspectos da vida quotidiana. No entanto, tal intimidade tem o potencial
de alimentar tanto o ódio como o amor (Scanzoni e Scanzoni, 1988).
Alguns dados disponíveis sobre a violência conjugal nos Estados Unidos,
revelam-nos que neste país se estima que as “mulheres maltratadas” andarão à
volta de 1,8 milhões por ano (Straus, Gelles e Steinmetz,1988). No nosso país,
embora não nos aproximemos ainda desta realidade estatística, alguns estudos
têm revelado uma tendência para a visibilidade crescente deste tipo de crime.
Por exemplo, no seu estudo, Elza Pais (1996) identificou 25 mulheres para 125
homens condenados por homicídio conjugal. Também a Associação Portuguesa
de Apoio à Vítima (APAV) tem revelado que a maior parte dos pedidos de
apoio dizem respeito ao crime de violência doméstica (4653 processos em 1999;
7593 processos em 2000). Os dados desta Associação continuam a corroborar a
tendência crescente deste crime, apenas com a diferença de que 5,1% das agres-
sões, para os primeiros meses de 2001, incidiram sobre os homens. Tal revela-
-nos que estes são igualmente vítimas de violência na família.
Em Portugal, os dados sobre a violência doméstica encontram-se dispersos
e na realidade são de pouco préstimo (Matos, 2002), uma vez que as suas
proporções são seguramente maiores do que eles revelam. Todavia, corroboram
o facto de cada vez mais o lar ser encarado, igualmente, como um lugar perigoso,
ocorrendo alguns crimes violentos dentro das suas portas.
Com efeito, vários estudos provaram que os homens que agridem frequen-
temente as suas mulheres tendem igualmente a maltratar os filhos; o mau trato
de crianças é quinze vezes mais provável em famílias em que a violência
doméstica está presente; as crianças que testemunham situações de violência
doméstica entre os pais têm uma probabilidade de se tornarem adultos maltra-
tantes três vezes superior à das crianças que não assistem regularmente a estas
situações (cf. Dias, 2003). Tais factos permitem-nos concluir que a família é,
nas nossas sociedades, uma instituição social violenta, tanto em tempo de guerra,
como de paz. O “mito da família idealizada”, sustentado pela ideologia român-
tica, é, em parte, responsável pela tendência para evitarmos olhar a violência
doméstica e por não a condenarmos como prática presente no relacionamento
conjugal e em outras interacções familiares. Importa, por isso, reconhecer que
ao lado da imagem ideal de “família-refúgio” temos que considerar a imagem,
igualmente realista, da “família que mata” (Saraceno, 1992). Importa, de igual
modo, e tal como vem sucedendo desde finais da década de 50 e início da de 60,
que a Sociologia continue a analisar o amor e a violência não como dimensões
mutuamente exlusivas, mas como componentes, simultaneamente, presentes
nas interacções conjugais e familiares.Isabel Dias
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Bibliografia
DIAS, Isabel (2003), Representações e práticas de violência doméstica em famílias de diferentes
meios socioprofissionais, Dissertação de Doutoramento em Sociologia, Porto, Faculdade de
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Afrontamento.
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LEBRUN, François (1983), A vida conjugal no Antigo Regime, Lisboa, Edições Rolim.
MATOS, Marlene (2002), “Violência conjugal”, in Rui Abrunhosa Gonçalves; Carla Machado
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PACHECO, José (1998), O tempo e o sexo, Lisboa, Livros Horizonte.
PAIS, Elza (1996), Rupturas violentas da conjugalidade: Os contextos do homicídio conjugal,
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– Violence in the American Family, California, Sage.

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