sábado, 6 de agosto de 2011

Recensão crítica: Etnografias Urbanas



Recensão crítica: Etnografias Urbanas
Graça Índias Cordeiro, Luís Vicente Baptista, António Firmino da Costa
Organizadores - Oeiras, Celta Editora, 2003
O título da obra remete para uma dupla constatação: trata-se, por um lado,
de um conjunto de reflexões e de apresentações de estudos de caso que têm a
cidade e/ou o urbano como pano de fundo (contexto) e, simultaneamente, como
objecto; ao mesmo tempo, enfatiza-se uma abordagem metodológica de cariz
intensivo e qualitativo, baseada numa pesquisa de terreno mais ou menos pro-
longada pela interacção entre observadores e observados. A dupla constatação
implica, aliás, uma firme interrelação, permanentemente realçada ao longo da
obra, nas mais diversas contribuições: a particular forma de estudar a cidade e o
urbano surge aqui entrelaçada com a construção do objecto teórico. Dito de
outro modo, faz-se jus ao princípio antiempirista de não dissociação dos dife-
rentes momentos da investigação: imaginação teórica e imaginação metodo-
lógica unem-se no mesmo esforço e este grupo de estudos torna-se distintivo no
cerne mesmo deste pressuposto.
Trata-se, na verdade, de um volume organizado a partir de um workshop
que reuniu, em 2001, em torno do tema Cidade e Diversidade: Perspectivas de
Desenvolvimento em Antropologia Urbana, vinte investigadores oriundos da
antropologia, sociologia e psicologia, divididos por três painéis temáticos
(Poderes e Mediação; Estilos de Sociabilidade; Imagens e Contra-Imagens)
cujos resultados são, no final, da obra, comentados pelo olhar do outro, consubs-
tanciado, neste caso, pelos contributos do brasileiro Gilberto Velho e do espanhol
Joan Pujadas.
Salientaria, desde logo, a filiação destes estudos na fileira de análise das
chamadas sociedades complexas, pós-industriais e pós-coloniais, em que o
triunfo da urbanização (e, concomitantemente, da racionalização e da seculari-
zação) se opera em espaços fragmentados, múltiplos, contraditórios, híbridos,Graça Índias Cordeiro, Luís Vicente Baptista, António Firmino da Costa, João Teixeira Lopes
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tensos e justapostos (heterotópicos, por conseguinte). Estudos que, além do
mais, ultrapassam os dilemas da familiarização com os contextos e objectos
«imediatos» (a cidade, o bairro, a esquina, o bar, a rua...), sem cair na exotização
do próximo. Maturidade analítica e metodológica, dir-se-ia. Um corpus de
conhecimento consolidado, diversificado, cumulativo. Mas não isento de
percalços, dúvidas, regressões ou formas extremas de conflitualidade, como
realça, no capítulo introdutório, Graça Cordeiro.
Um dos indícios mais consistentes desta maturidade reside, a meu ver, na
interiorização do jogo de cruzamento de escalas de análise, o contínuo vaivém
entre abordagens micro, meso e macrossociais, sem resvalar para aporias inúteis.
As grandes teorias, como as de Bourdieu, Giddens ou Elias, mesmo quando
não explicitamente convocadas, parecem suficientemente consolidadas, o que
evita discussões estéreis. É notória, não o escondo, a opção pelas escolas
hermenêuticas, já que a abordagem etnográfica implica uma necessária aproxi-
mação e respeito pelos pontos de vista autóctones, destruindo as veleidades de
um ângulo de análise soberano sobre as práticas sociais. Salientam-se, por isso,
as competências disposicionais dos sujeitos, os seus discursos, as suas vozes, a
sua corporalidade, a sua capacidade de, pela linguagem, criar um mundo prenhe
de sentido. Mas não se descuram, por ingenuidade ou miopia, as articulações
cruzadas e sobredeterminadas com os mecanismos interaccionais e institucionais.
Tal como sublinha António Firmino da Costa, os espaços urbanos, ao contrário
de algum cepticismo dominante sobre a desvitalização das sociabilidades de
proximidade e do espaço público, são “quadros de relacionamento social
fervilhantes, de estilos de vida variados, sejam eles consolidados, emergentes
ou combinatórios”. Interessa-me, aqui, enfatizar a noção de “quadro de
interacção”, na linha do que nos propõe Firmino da Costa, ressalvando a
especificidade distintiva da ordem da interacção e das suas articulações quer
com as estruturas sociais mais vastas, quer com os habitus dos sujeitos (que
são, sempre, relacionais – interhabitus, na esteira de Madureira Pinto).
Da mesma forma, a obra assim nos indica, não mais parece fazer sentido a
oposição categórica entre localização e deslocalização, território e desterri-
torialização, presença e ausência, lugar e não-lugar, local e global. Em percursos
e situações liminares, todos estes conceitos se refundem. Como refere uma vez
mais Firmino da Costa, a co-presença não perde a sua vocação intrinsecamente
interaccional no caso de não ser directa ou face-a-face. Basta pensar nos usos
quotidianos da internet e dos telemóveis.
Finalmente, importa fazer notar que esta obra nos transporta para dentro
e para além de diferentes disciplinas, atravessando-as. Se, como observaRecensão crítica: Etnografias Urbanas
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Madureira Pinto1
, antes de nos aventurarmos em exercícios de superação das
fronteiras disciplinares é necessário dominar, com afinco, o corpus epistemo-
lógico, teórico e metodológico de cada universo disciplinar, é caso para afirmar
que os autores demonstram um grande à-vontade numa espécie de terreno comum
formado pelos estudos etnográficos urbanos, sem grande preocupação pelas
barreiras alfandegárias das disciplinas de pertença (ou apenas de origem?), de
que tanto nos falava Fernand Braudel. Sinal de maturidade, como anteriormente
referi. Mas, igualmente, da produção de novas linhas de demarcação. É caso
para referir que existe maior afinidade entre os psicólogos sociais, antropólogos
e sociólogos deste livro do que entre certos investigadores de uma mesma
disciplina. Une-os, já aqui foi dito, não só o fascínio pelo contexto e  texto urbanos
(não totalmente sobreponíveis à cidade como território administrativamente
fixado -  questão que poderia ter sido conceptualmente clarificada) a um mesmo
tempo cenário e objecto, mas, igualmente, a sua opção etnográfica, traduzindo,
implícita ou explicitamente, uma recusa das abstracções desenraizadas de tipo
explicativo e determinista, como refere Graça Cordeiro. Neste e noutros sentidos,
Etnografias Urbanas é um livro de felizes encontros.
Por João Teixeira Lopes
1
 Vd. José Madureira Pinto, Propostas para o Ensino das Ciências Sociais, Porto, Afron-
tamento, 1994.Graça Índias Cordeiro, Luís Vicente Baptista, António Firmino da Costa, João Teixeira Lopes

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