sexta-feira, 29 de julho de 2011

: CONTRIBUIÇÕES PARA UM DEBATE ÉTICO

O CUIDADO COMO ATRIBUIÇÃO FEMININA: CONTRIBUIÇÕES PARA UM
DEBATE  ÉTICO
*Olegna de Souza Guedes
**Michelli Aparecida Daros

*Olegna de Souza Guedes, doutora em Serviço Social, docente do Curso de Graduação em Serviço Social e do
Mestrado em Serviço Social e Política Social da Universidade Estaudal de Londrina
E-mail: olegnasg@gmail.com

**Michelli Aparecida Daros, graduada em Serviço Social;   membro desde o ano de 2007 do grupo de pesquisa 
“Ética e direitos Humanos: princípios norteadores em campos de atuação profissional do assistente social” e
desenvolveu projetos de iniciação científica sobre a relação entre ética e gênero.


Resumo:

O presente artigo aborda, através da análise de gênero e de uma reflexão ética, a atribuição do
ato de cuidar às mulheres na sociabilidade burguesa.  Centra-se na preocupação com a forma
como se apresenta, no cotidiano das mulheres, a incorporação de atividades relacionadas aos
cuidados de outros seres humanos em processo de crescimento ou que dependem dos
cuidados dos outros para garantir o direito à vida. Mostra que esta incorporação relaciona-se
com a adesão a valores morais e atribuições de funções diferenciadas para homens e mulheres
nessa socialibilidade. Insiste na necessária análise crítica desta adesão para que se possa
trilhar por escolhas livres que, para além da teia de causalidades postas por condições
materiais de existência, possam fundar novos valores. Sinaliza, também, para a importância
desse debate na construção de políticas públicas voltadas para a ampliação da autonomia das
mulheres.

Palavras-Chave: valores morais, atribuição de papéis, ato de cuidar.

Abstract:

This article addresses, through the analysis of gender and ethical reflection, the attribution to
women, of the act of caring in bourgeois sociability. It focuses on the concern with the way it
is presented, in a daily basis in women’s life, the inclusion of activities related to the care of
other human beings in the process of growth or those who depend on the care of others to
ensure the right to life. It shows that this incorporation is related to adherence to moral values
and assignment of differentiated functions for men and women in this social state. It stresses
the need for a critical analysis of this adherence enabling, this way, a tracking through free
choices that beyond the web of causalities posed  by material conditions of existence, may
establish new values. It also signals to the importance of this debate in the construction of
public policies aimed at the expansion of women empowerment.

Key-words: moral values; roles; act of caring.


Introdução

No senso moral construído na sociabilidade burguesa, as atividades que derivam do ato de
cuidar tendem a ser atribuídas às mulheres  e naturalizadas de forma a aparecerem como 
exclusivas e constitutivas da condição feminina.   Ancorado neste senso moral, valores como
altruísmo e atribuições como a maternagem1
 presentificam -se no cotidiano das mulheres,
sobre a forma de dupla jornada de trabalho.

Às mulheres, ainda que exerçam atividades profissionais não vinculadas ao ato de cuidar,
impõem-se a responsabilidade pelo cuidado de seus familiares ou porque estes se encontram
em desenvolvimento (crianças e adolescentes) ou porque, em decorrência de avançados
processos de envelhecimento ou adoecimento, necessitam de cuidados intensivos. As
mulheres têm, portanto, na construção da  sociabilidade burguesa, ampliada a teia de
mediações que concorrem para o processo  de alienação que coíbe a possibilidade de
realização de projetos livres. Cuidar dos familiares, dos companheiros, em concomitância
com as atividades sócio-ocupacionais, para cumprir normas historicamente criadas e
interpretadas como inerentes à natureza feminina, tornam-se aspectos de uma realidade que
tende a desprender-se de seus sujeitos e apresentar-se como eterna. 

Inegável as conquistas do movimento feminista
2
, entre outros aspectos, no questionamento
desse processo de naturalização e no empenho em trazer à tona a possibilidade e necessidade
da igualdade de oportunidades e de participação política, para além do sexo masculino e
feminino. Um exemplo deste processo é a garantia direitos políticos, civis e sociais a
mulheres e homens postos na Constituição Federal de 1988. A moralidade histórica, contudo,
continua a reger as ações dos indivíduos sociais e a estampar a incongruência entre lei e
realidade. Este artigo centra-se, então, na análise de um dos aspectos desta moralidade: a
atribuição, prioritária, ao gênero feminino do ato de cuidar de outros seres humanos em
situação de fragilidade ou que necessitam maior nível de proteção.  


                                                
1
  Importante estabelecer, apoiados em Badinter (1985), a  diferença entre maternagem e maternidade. Por
maternagem compreende-se a capacidade de cuidar de uma criança, educá-la moralmente para que possa viver
em sociedade, esta capacidade está ligada ao cuidado geral desempenhado pela mulher, uma vez que ela pode
exercer esta capacidade socialmente apreendida em outras esferas de sua vida, como por exemplo cuidar de
familiares em momentos de doença, por exemplo. A maternagem é uma construção sócio-histórica, pode ser
exercida por homens e mulheres, embora o estigma continue no campo feminino.A maternidade é a capacidade
de parir uma criança, condição que só as mulheres possuem.
2
 É a partir década de 80 que o Movimento Feminista no Brasil trava lutas importantes em todas as esferas
sociais, o que ocasiona a visibilidade da questão de gênero e a construção de algumas políticas que supram essa
demanda. 
1. As mulheres e o ato de cuidar
Dados de uma pesquisa exploratória
3
 realizada durante o desenvolvimento do Projeto de
Extensão “Desvelando e construindo o processo do acompanhar e do cuidar de pacientes com
doenças crônico-degenerativas” mostram que os cuidadores de doentes crônicos e que estão
em tratamento no Hospital Universitário de Londrina, são em sua maioria (88%), do sexo
feminino. A maioria deste percentual (70%) é composta por filhas ou por esposas de pacientes
internados neste hospital. O acesso a estes dados aliado às reflexões sobre valores morais
desenvolvidas no grupo de pesquisa “Ética e Direitos Humanos: princípios norteadores em
campos de atuação profissional do assistente social” nos motivou a refletir sobre a atribuição
do ato de cuidar às mulheres.

Observa-se no senso comum afirmações em que a naturalização da mulher como cuidadora
vincula-se a diferentes lugares atribuídos a ela na família: esposa ou companheira; filha, mãe,
tia, avó. De qualquer lugar, desde que seja mulher, cuidar do membro da família que está
adoecido e requer atenção constante ou ainda, cuidar dos familiares para que atravessem uma
fase de fragilidade a fim de preservar o direito à vida , torna-se prioritário sobre os próprios
projetos
4
. Ao identificar-se com o ato de cuidar, a mulher, muitas vezes, distancia-se da
possibilidade de outras escolhas, ou distancia-se dos próprios projetos. Cuidar do outro torna
se o seu cotidiano. De forma analógica, pela metáfora da relação entre a galinha e ovo, diz
Lispector:

Ovo é coisa pra se tomar cuidado. Por isso a galinha é o disfarce do ovo.
Para que o ovo atravesse os tempos à galinha existe. Mãe é para isso [...] O
ovo é o grande sacrifício da galinha. O ovo é a cruz que a galinha carrega na
vida. O ovo é o sonho inatingível da galinha. A galinha ama o ovo [...] Se
                                                
3
 A pesquisa, que é parte das atividades do Projeto de Extensão Projeto “Desvelando e construindo o Processo
do Acompanhar e do Cuidar de Pacientes com Doenças Crônico-Degenerativas” foi realizada entre 2006 e 2007.
Foram entrevistados 387 cuidadores de pacientes hospitalizados nas unidades, masculina e feminina, e de
Moléstias Infecciosas do referido hospital. Tal pesquisa, foi coordenada pela Profa. Lúcia Helena Machado do
Carmo e teve seus dados expostos no “Salão de Extensão” realizado na Universidade Estadual de Londrina em
2008. A referida pesquisa,  conforme apresentação nesse Salão, permitiu levantar dados básicos como:
identificação pessoal e familiar; o processo da doença, focalizando as condições de saúde do cuidador; questões
referentes às condições objetivas para o ato do cuidar. 
4
 Dentre as pesquisas que tivemos acesso e que corroboram para a veracidade da afirmação que ora fazemos está
a de Zagabria (2002). A autora, na análise da trajetória de sete mulheres que cuidam dos idosos de suas famílias,
mostra que estas até reclamam do que fazem, mas assumem o papel de cuidadoras como algo do qual não podem
desvencilhar-se porque são mulheres e elas são delegadas, ainda que de forma tácita, pela família a
responsabilidade pelo desenvolvimento deste papel. 
soubesse que tem em si mesma o ovo, perderia o estado de galinha. Ser
galinha é isso. A galinha tem o ar constrangido. (Lispector, 1975, p.58).

São os vetores sociais que vinculam os cuidados dos familiares às mulheres, mas estes
aparecem como se fossem biológicos à semelhança do processo que une o ovo à galinha, na
metáfora de Lispector. Nesta, ovo é função da galinha, antes mesmo de ela ser a galinha. As
cuidadoras, como se observa nas conclusões do Projeto de Extensão que mencionamos,
cuidam de seus filhos, irmãos, companheiros ainda que estes, muitas vezes, representem
grandes sacrifícios e exijam renuncia às próprias escolhas.  Antes de serem, cuidam. Adiam
seus projetos, tal qual a galinha paralisa suas asas sobre o ovo a ser chocado. 

A construção do papel de cuidar e sua limitação ao âmbito doméstico são identificadas como
inerente à esfera privada, como se a sociabilidade humana fosse cindida em esferas
colidentes: uma restrita à intimidade e outra,  à esfera a pública, identificada, entre outros
fatores, como a destinada à participação política.  Sob este aspecto Arendt (1989) analisa
aspectos históricos do delineamento destas esferas e mostra que a esfera privada, na Grécia
antiga, era interpretada como reino para o suprimento das necessidades básicas e, por isto,
como o espaço da não-liberdade; o espaço pré-político; o espaço do labor sem a “testemunha
de outros”. Vejamos o que diz a autora:

O que distinguia a esfera familiar era que nela os homens viviam juntos por
serem a isso compelidos por suas necessidades e carências. A força
compulsiva era a própria vida [...] e a vida, para sua manutenção individual e
sobrevivência como vida da espécie, requer a companhia dos outros. O fato
de que a manutenção individual fosse a tarefa do homem e a sobrevivência
da espécie fosse a tarefa da mulher era tido como óbvio; e ambas estas
funções naturais, o labor do homem no suprimento de alimentos e o labor da
mulher no parto, eram sujeitas à mesma premência da vida. Portanto, a
comunidade natural do lar decorria da necessidade: era a necessidade que
reinava sobre todas as atividades exercidas no lar. [...] A esfera  polis, ao
contrário, era a esfera da liberdade, e se havia uma relação entre essas duas
esferas era que a vitória sobre as necessidades da vida em família constituía
a condição natural para a liberdade na polis. (Arendt, 1995, p. 40).


Faria & Nobre (1997), na esteira dessa análise de Arendt, afirmam que com a consolidação do
capitalismo, cristaliza-se a divisão entre as  esferas pública e privada e que esta última é
considerada como o lugar próprio das mulheres, do doméstico, da subjetividade, do cuidado;
enquanto a esfera pública é considerada como o espaço dos homens, dos iguais, da liberdade,
do direito. Prescreve-se, então, às mulheres, a maternidade e os cuidados que dela derivam 
com relação à preservação da casa e dos filhos bem como a tarefa de guardiã do afeto e da
moral da família.  Embora prescritos, esses papéis são assumidos e revelam-se como
mediações que concorrem para os diversos níveis de alienação.    Naturalizado, rotineiro,
repetitivo, o cuidado do outro atribuído às mulheres se distancia de qualquer teleologia e
aparece como uma causalidade que se impõe sobre a forma de uma tolerância avessa à práxis
humana, como traduz a metáfora de Lispector

Os ovos estalam na frigideira, e mergulhada no sonho preparo o café
da manhã. Sem nenhum senso da realidade, grito pelas crianças que
brotam de várias camas, arrastam cadeiras e comem, e o trabalho do
dia amanhecido começa gritado e rido e comido, clara e gema, alegria
entre brigas, dia que é o nosso sal e nós somos o sal do dia, viver é
extremamente tolerável, viver ocupa e distrai, viver faz rir. (Lispector,
1975, p. 64).

Esta causalidade está regulamentada, muitas vezes de forma implícita, na divisão social do
trabalho e nas relações sociais de sexo que são relações antagônicas e estruturantes para o
conjunto do campo social; transversais à totalidade desse campo social e coexistente em
qualquer meio social (Kergoat,1996).  Na definição dessas relações, Kergoat (1996) reflete
sobre a necessária ruptura radical com as explicações biologizantes sobre as diferenças entre
as práticas sociais masculinas e femininas; o que implica na ruptura com modelos supostos
como universais. A autora afirma que as  diferenças entre os sexos são construídas
socialmente; têm uma base material e revelam-se como relações de poder.  As relações sociais
de sexo e a divisão do trabalho, conclui a autora, são duas proposições indissociáveis que
formam um sistema. É, portanto, a análise em termos de divisão sexual do trabalho que torna
possível demonstrar que existe uma relação  social específica entre os grupos de sexo. A
relação entre os sexos não se esgota na relação conjugal, mas é ativa em todos os níveis
sociais em suas configurações histórico-sociais. 


2. Aspectos da moralidade e das atribuições de gênero presentes no papel de cuidador
atribuído à mulher: dimensões a serem consideradas nas políticas públicas destinadas às
mulheres

A moral, na perspectiva materialista histórica, pode ser traduzida como um conjunto de regras
destinadas a regular as relações entre os indivíduos numa comunidade social em um
determinado contexto sócio-histórico. Importante ressaltar que na análise histórica 
estabelecida por Vásquez (2000), um dos autores que se filiam a esta perspectiva, a função,
validade, e o significado da moral são vinculados ao desenvolvimento histórico no bojo do
qual se erigem diferentes modos de produção e que trazem a exigência de valores que fundam
novas formas de dever-ser consoantes com estes modos de produção. 

Para Vazquez (2000), vinculada ao modo de  produção, a moral é histórica precisamente
porque é um modo de comportar-se do homem, que é um ser histórico por natureza, ou seja,
um ser que se auto-reproduz, constantemente, no plano de sua existência material, prática e
espiritual. O que se quer ressaltar é a possibilidade da práxis humana. O dever ser está
vinculado às condições materiais de existência que se delineiam em conformidade com um
determinado modo de produção; mas estas condições não são antinômicas à teleologia.     

A moral tem sua gênese na superação humana da natureza instintiva e no afastamento, ainda
embrionário (na sociedade primitiva) das barreiras naturais em se dá o processo de construção
do ser social; isto é, quando o homem se distancia, ainda que primariamente, dos limites
naturais e descobre-se capaz de viver em coletividade para o que se torna necessário, e
estabelece formas de ser nesta coletividade. A moral exige, portanto, não apenas que o
homem esteja em relação com os demais, mas também que tenha consciência desta relação
para que possa comportar-se de acordo com as normas e prescrições que o governam. 

Como uma das esferas constitutivas da substância de sociedade, a moral não é avessa à ação
humana, ao contrário, ela apresenta-se como:

“(...) sistema de exigências e costume que permite ao homem converter em
necessidade interior – em necessidade moral – a elevação acima das
necessidades imediatas (...) de modo que a particularidade se identifique com
as exigências, aspirações  e ações sociais que existem para além das
causalidades da própria pessoa, elevando-se realmente até essa altura”
(Heller,1972, p.05).


No cotidiano, palco das ações rotineiras e repetitivas, esta conversão da particularidade em
exigências postas pela teia de causalidades  coíbe a necessária criticidade com relação aos
valores que antecedem e orientam as escolhas dos homens e as mulheres. Reitera-se, dessa
forma, a ausência de alternativas e possibilidades de escolhas efetivamente livres. Este fato
não elimina, entretanto, a possibilidade  da teleologia constitutiva do processo de 
autoconstrução do ser social e da construção da liberdade. Dentre as mediações necessárias
para apreensão de elementos constitutivos desse processo, no que tange valores que permeiam
as escolhas humanas na sociabilidade burguesa, estão as delegações de responsabilidades
sociais em conformidade com o gênero masculino ou feminino. 
Ressalta-se que modelo de família nuclear cristalizado no âmbito dessa sociabilidade
burguesa
5
, as responsabilidades que recaem sobre a mulher são inculcadas desde que estas
ainda são crianças, nos primórdios da educação familiar. 

As crianças são levadas a se identificarem com modelos do que é feminino e
masculino para melhor desempenharem os papéis correspondentes e as
atribuições femininas não são apenas diferentes, mas também desvalorizadas,
onde a mulher vive em condições de inferioridade e subordinação em relação
aos homens. As desigualdades entre homens e mulheres são construídas pela
sociedade e não pela diferença biológica entre os sexos. (FARIA &
NOBRE,1997, p.10. apud. PINTO, 2008)

Para estudar este processo de identificação e naturalização de papéis que conformam a
situação desigual entre os diferentes gêneros feminino e masculino, se desenvolvem os
estudos que convergem para a construção do gênero6
.  Nestes estudos, reflete-se que cabe as
mulheres, entre outros papéis, os que se referem aos cuidados, sobretudo, com os filhos e
familiares.  A incorporação destes papéis e das atribuições rotineiras que dele derivam são
singularizadas de forma a aparecerem como escolhas estoicamente prazerosas. Vejamos,
novamente a metáfora de Lispector: 
[...] quanto ao prazer dos agentes, eles também recebem sem orgulho.
Austeramente vivem todos os prazeres: inclusive é o nosso sacrifício para
que o ovo se faça. Já nos foi imposta, inclusive, uma natureza toda adequada
a muito prazer. O que facilita. Pelo menos torna menos penoso o prazer.
(Lispector, 1975, p.63).
Em outro momento:
                                                
5
 Dentre outros autores, Szymasnki (1997, p. 24) esclarece que dentre os modelos e teorias sobre famílias está o
que se refere à família nuclear burguesa, composta por mãe, pai e filhos. “Fora desse contexto as famílias são
consideradas incompletas e desestruturadas”.
6
Sobre o conceito de Gênero, Costa (2005) afirma que  se trata de um conceito ainda em construção, mas
fundamental para estudar, cientificamente, as relações estabelecidas entre mulheres e homens; os papéis que
cada um assume na sociedade e as relações de poder estabelecidas entre eles. 
[...] a galinha não foi sequer chamada. A galinha é diretamente uma
escolhida. – A galinha vive como em sonho. Não tem senso de realidade.
Todo o susto da galinha é porque estão sempre interrompendo o seu
devaneio. A galinha é um grande  sono – A galinha sofre de um mal
desconhecido. O mal desconhecido da galinha é o ovo. (Lispector, 1975,
p.60).

Muitas vezes desconhecidos, os papéis femininos são assimilados como inerentes ao gênero
que é, segundo Scott (1994), um elemento constitutivo de relações sociais fundadas sobre as
diferenças percebidas entre os sexos; um primeiro modo de dar significado às relações de
poder. 

No âmbito dessas relações de poder figura-se um modelo-padrão de família, mononuclear,
isto é, constituído por mãe, pai e filhos, ainda que a realidade mostre configurações de outros
arranjos familiares
7
. Este modelo-instituição é base para o desenvolvimento da identidade de
gênero, é neste ambiente que as crianças aprendem a “ser homens” e “ser mulheres”. Espaço
para construção de aspectos identidários, a família deve ser o ambiente de afeto, em que se dá
a garantia o equilíbrio psicológico de seus membros. As mulheres são consideradas as
responsáveis por esta suposta harmonia. (Faria & Nobre, 1997) e pelo suprimento das
necessidades afetivas dos membros da família; um dos aspectos vinculados ao ato de cuidar.  

Nesta perspectiva, Izquierdo (1990) aponta que quando se pensa em mulher, supõe-se um
sexo, mas também muitas outras faces identidárias tais como: dona-de-casa, passividade,
maternidade, afetividade.  Enquanto ao homem, atribuem-se características como
investigador, profissional, agressivo, racionalista, pouco detalhista.

Estes papéis desempenhados pelos diferentes sexos, na perspectiva histórica posta pela
categoria gênero, não são imutáveis; mas ao  contrário, associados ao senso moral e às
necessidades mercantis; podem, portanto se apresentar novas roupagens para atender a novas
requisições; mas podem também ser ultrapassados sobre uma perspectiva igualitária de
ampliação do gênero humano. Ainda que uma nova moral que tenha na igualdade seu aspecto
basilar não seja possível na sociabilidade burguesa
8
; faz-se necessário construir as bases de
                                                
7
 Bilac (2005), em “Família: algumas inquietações”, faz  referência a alterações importantes nos padrões
familiares e questiona: “Em que medida estas mudanças significam a renovação do(s) modelo (s) já existentes ou
a emergência de novos modelos?” (Bilac,2005, p.35 a 38).
8
 Uma nova moral, verdadeiramente humana, implicará  numa mudança de atitude diante do trabalho, num
desenvolvimento do espírito coletivista, na eliminação do espírito de posse, do individualismo, do racismo e do 
um novo dever ser, no qual, homens e mulheres não tenham seus papéis prescritos pela
desigualdade e não sejam destituídos de sua capacidade teleológica. 

Heller (1972) considera que tudo que contribui para o enriquecimento dos componentes da
essência humana - o trabalho, a sociabilidade, a universalidade, a consciência e a liberdade -
são valores e estes, dentre os quais estão os valores morais, não são autônomos; mas inscreve-
se na conexão da particularidade com a universalidade humana, presente na escolhas livres. 

Entender as escolhas, sem a reflexão da liberdade como constitutiva do processual idade do
ser social que se dá nessa conexão, é esvaziá-las do seu significado; significa limitá-las à
resignação estóica. Mais uma vez, a analogia de Lispector é esclarecedora:  

A galinha não queria sacrificar a sua vida. A que optou por querer ser
“feliz”. A que não percebia que, se passasse a vida desenhando dentro de si
como uma iluminura o ovo, ela estaria servindo. A que não sabia perder a si
mesma. A que pensou que tinha penas de galinha para se cobrir por possuir
pele preciosa, sem entender que as penas eram exclusivamente para suavizar
a travessia ao carregar o ovo, porque o sofrimento intenso poderia prejudicar
o ovo. A que pensou que o prazer lhe era um dom, sem perceber que era para
que ela se distraísse totalmente o vôo se faria [...] A que pensou que “eu”
significa ter um si - mesmo. (Lispector, 1975, p.61).


A recusa dos padrões morais e da rigidez dos papéis atribuídos aos homens e às mulheres e o
necessário reconhecimento destes como sujeitos sociais traz à tona a emancipação social
feminina. Tal é a perspectiva que deve iluminar as políticas públicas que trilham o caminho
da eqüidade entre os gêneros e que se insere, ainda que nos limites da ordem burguesa, no
debate da perspectiva democrática de direitos, em que cidadãos independentes de etnia e
gênero têm direitos sociais assegurados. Neste sentido, cabe ressaltar que a luta das mulheres
pela igualdade de gênero não está relacionada apenas aos seus interesses imediatos, mas aos
interesses gerais da humanidade. Assim é necessário pensar as políticas públicas sobre a
perspectiva gênero e refletir sobre o lugar das mulheres nessas políticas.
                                                                                                                                                         
chauvinismo; trará também uma mudança radical na atitude para com a mulher e a estabilização das relações
familiares. Em suma, significará a realização efetiva do princípio kantiano que convida a considerar sempre o
homem como um fim e não como um meio. Uma moral deste tipo pode existir somente numa sociedade, na qual,
depois da supressão da exploração do homem, as relações dos homens com os seus produtos e dos indivíduos
entre si se tornem transparentes, isto é, percam o caráter mistificado, alienante que tiveram até aqui.” (Vázquez,
2002, p. 53)
 

Godinho & Silveira (apud Carloto 2004), na análise dessas políticas destinadas às mulheres,
destacam que estas devem possibilitar a ampliação das condições de autonomia e auto-
sustentação das mulheres de forma a romper com os círculos de dependência e subordinação;
promover a capacitação profissional; ampliar o acesso à escolaridade; possibilitar a revisão
das funções do cuidado familiar e da divisão  do trabalho doméstico; combater a violência
sexual e doméstica; garantir o exercício dos  direitos reprodutivos e sexuais; combater a
pobreza das mulheres; fortalecer espaços de democracia como o controle social.

As políticas públicas não são neutras; ao contrário, são construídas de forma a beneficiar
determinados interesses e tendem a obedecer  à lógica tradicional o Estado, no que tange à
fragmentação das ações (Silveira, 2003).  Desta maneira, para que a igualdade das relações
sexuais esteja na pauta dessas políticas, é preciso que elas, em sua totalidade, tenham, no
emaranhado de suas redes, a perspectiva de gênero. Silveira (2003) considera que caminhar
para políticas integradas de gênero é uma aspiração ainda distante para a maioria dos
organismos de políticas para mulheres na administração pública brasileira e, ressalta:

Para que as desigualdades de gênero sejam combatidas no contexto do
conjunto das desigualdades sociais, pressupõem-se práticas de cidadania
ativa para que a justiça de gênero se concretize, sobretudo pela
responsabilidade do Estado de redistribuir riqueza, poder, entre regiões,
classes, raças e etnias, entre mulheres e homens etc. (Silveira, 2003, p.02).
 
A autora ilustra essa reflexão com as propostas do Ministério da Educação (MEC)
9
, em 2003,
nas quais se destacava a criação de uma bolsa para que as mães cuidassem dos filhos, de até
três anos de idade, fora da creche. Várias questões são questionáveis nessa proposta, diz a
autora, sobretudo, a reafirmação da mulher como cuidadora, restringindo-a ao papel de mãe.
Interpreta-se, nestas propostas, que cabe à mulher receber uma bolsa para cuidar, como se ela
fosse à substituta da ausência desse equipamento social. Uma substituição que recebe o nome
de benefício e que atribui a mulher o nome de beneficiária de um recurso que visa incluir suas
crianças. Por este prisma, Carloto (2004) considera que a principal estratégia das políticas
centradas na família, e que têm como tônica a  entrega direta de bens ou atividades de
capacitação, reforçam as habilidades consideradas adequadas às donas de casa e mães não-
trabalhadoras.
                                                
9
 A notícia se encontra nos arquivos do Jornal Folha de São Paulo (29/06/2003 ,C9) 

Não são, entretanto, apenas estratégias ou diretrizes circuncidadas nas políticas públicas que
fomentarão a emancipação feminina. Faz-se  necessário empenhar para construção social,
sedimentada de valores críticos para que os padrões estéticos (na metáfora de Lispector, as
“belas penas da Galinha”) tenham seu real valor. Para que isto ocorra deve-se pleitear: a
reconstrução de valores; não escravismo à aparência veiculada pela mídia como se as
mulheres fossem feitas em séries e responsáveis pelos cuidados que as mantém nestes padrões
estéticos. Referimo-nos à necessária reflexão  e construção de valores que contemplem a
diversidade das formas e que não se estejam restritos a regras de condutas com raios de ação
pré-definidos. Referimo-nos à possibilidade  de escolhas livres e que concorram para
realização do gênero humano. 

Conclusão

Superar a atribuição do papel de cuidador de  seres humanos em situação de fragilidade às
mulheres é uma perspectiva ética a ser construída. Sabe-se que reconstrução de valores, não
se dá por saídas e descobertas individuais, mas, como diz Heller, através da possibilidade de
entender que o Eu é também um nós. Escolhas e valores cotidianos são carregados de
sociabilidade e, entender este caráter é fundamental para construção de uma causalidade que
não se imponha como determinista, mas traga, em seu cerne, a possibilidade de valores que
concorram para uma sociabilidade fundada na igualdade do gênero humano..
A construção desta nova faceta da história não cabe apenas às mulheres, mas aos sujeitos
sociais, de ambos os sexos, que podem questionar valores e construir novas possibilidades
histórico-sociais.    Se causalidade e teleologia não são antinômicas, o cuidado pode ser
atribuição de todos os indivíduos sociais, na construção de escolhas livres. È a partir deste
prisma que o cuidado pode ser um exercício  de alteridade e não a negação das próprias
escolhas ou o desconhecimento da possibilidade dessas escolhas.


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